A questão da linguagem, pensamento e afetividade estão totalmente entrelaçadas quando tratamos do desenvolvimento do ser humano, pois como no princípio não há um sujeito constituído, e sim constituindo-se, este movimento do constitui-se só acontece em um contexto sócio-culltural. Assim, desde o momento da concepção de uma criança, este movimento está em devir, e perdurará mesmo depois do nascimento do bebê quando se estabelece uma relação dele com o mundo e com o outro. Aqui, o outro no primeiro momento é representado pela mãe, que numa leitura winnicottiana deve ser mãe suficientemente boa[1], ou seja, a mãe é a base de sustentação de toda e qualquer função psíquica que só se desenvolve na presença do outro, apontando para o sentimento de continuidade do ser para a construção da externalidade. Desta forma, a máxima cartesiana do “Penso, logo existo”, na teoria psicanalítica de Winnicott em relação a mãe - bebê é substituído por: “Eu sou visto, logo existo". Ou seja, eu sou visto e ouvido por alguém!
Diz Fernándes (1991) citando Paín que “no primeiro momento, a mãe ou o seu equivalente busca os olhos da criança e a criança busca seus olhos...”. (p.28). Espaço potencial como diria Winnicott, portanto, um espaço de aprendizado, onde a mãe desloca o olhar para um objeto ou pessoa, e a criança também desvia o olhar no mesmo sentido, até o momento em que ambos encontram um objeto em comum, de reencontro, havendo aí início do conhecimento de objetos externos, da realidade, do mundo.
“A mãe, no começo, através de uma adaptação quase completa, propicia ao bebê a oportunidade para a ilusão de que o seio dela faz parte do bebê, de que está, por assim dizer, sob o controle mágico do bebê.” (O brincar e a realidade, 1975, p.26 )
Nota-se que Winnicott funda as bases do seu pensamento no ato de criar, dando importância ao ludismo, ao fenômeno da ilusão que permite a criação do objeto subjetivo, à capacidade de conceber e ao desenvolvimento do uso da capacidade imaginativa frutos da criação do indivíduo. Sendo assim, o referido autor estabelece uma relação entre a manifestação lúdica e o potencial criativo, vendo o brincar como uma experiência criativa indispensável ao desenvolvimento integral do sujeito. Daí, a sua afirmação: “É o brincar, e somente no brincar, que o indivíduo criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral; e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o seu Self[2]” (Winnicott, 1975, p.80).
O mesmo autor parte do princípio que existe um “espaço potencial”, ou espaço do brincar[3] entre a mãe e o bebê denominado de “Playground”, onde se tem início a formação da identidade, ou melhor, onde está constituindo-se como sujeito. E, este constituir-se no mundo é verificado através das manifestações lúdicas onde a criança deixa fruir sua capacidade de criar, recriar e reinventar a realidade que está inserida através da oralidade do brincar e do falar.
Para compreendermos melhor este “espaço potencial” winnicottiano, podemos aqui nos referir a anterioridade estrutural que Freud circunscreve ao introduzir o conceito de narcisismo primário[4]. Esta premissa freudiana é o ponto de partida para o bebê constituir-se como sujeito, espaço do desejo de um outro[5], necessária à constituição psíquica da criança, ou melhor, necessária a constituição de sua subjetividade quando vier ao mundo, ou segundo as palavras do filósofo Martin Heidegger: ser-no-mundo.
Heidegger, em Ser e Tempo, por sua vez diz que:
“A palavra essencial, sendo a essência da palavra no tempo das realizações, é apenas silêncio. Por isso, não há nada nem além nem aquém da palavra, só se dá mesmo o nada. E não se trata de um nada negativo, nem nada que se esvai e contenta em negar tudo sem negar a si mesmo em sua negação. Trata-se de um nada criativo, um nada que deixa tudo originar-se: a terra, o mundo, a história, os homens, com todas as negações e afirmações. É um nada que constitui a estrutura ser-no-mundo.” (Heidegger, 1988, p.16)
Este ser-no-mundo pode ser parafraseando Fernando Pessoa, um intervalo entre duas palavras, onde não há palavra que nos diga por completo, pois o sentido fugidio sempre nos escapa por estarmos imersos no vazio, mas ao mesmo tempo gerados pelo desencontro, por esse vazio. (Pessoa apud Speller, 2004, p.18). Assim, “a convivência, no jogo das palavras, é celebrada pelo poeta nesses versos: “Brincava a criança com um carro de bois. Sentiu-se brincando e disse: eu sou dois!” (Pessoa apud Buzzi, 1979, p.188).
“No cotidiano, a criança irá constituindo sua imagem a partir das palavras e do olhar da mãe, do espelho por ela oferecido. Nesses dois que se fazem um, o bebê se verá por que e como é visto e falado por ela, aprendendo a cultura e a si mesmo a partir de quem o materna, seu espelho nessa relação dual.” ( Speller, 2004, p.72)
Desta forma, podemos notar que o modo ser-no- mundo é necessariamente saber lidar com o vazio, constituindo-se enquanto sujeito numa relação direta com o desejo do outro. Temos que saber lidar com a falta, “é porque nos falta que desejamos. É porque a castração faz nascer o desejo, ao nos tirar da posição de ser tudo para o outro, no caso da mãe, que podemos criar nosso próprio percurso nesta vida.” (Speller, 2004, p.29). Somos portanto, de acordo com a Psicanálise, sujeitos do inconsciente estruturado no outro, ou seja, na linguagem, na cultura, no lugar onde as palavras ganham sentido, por isso constituídos no simbólico e no lidar com o outro no mundo através das vivências de afetos.
Neste sentido, Winnicott (1975) salienta que é importante nesta relação com o outro (no caso da mãe) o fenômeno da ilusão na possibilidade de o bebê poder lidar com o vazio e suportar a presença de uma ausência, enfatizando que é justamente nesta relação que o brincar se origina e se desenvolve. Assim, brincar é uma experiência que envolve o corpo, objetos, um tempo e um espaço, tendo início, meio e fim, como a vida. Enfim, brincando o bebê que se faz criança e depois adulto, permite o desenvolvimento da tolerância à frustração, canalização da agressividade, etc.
Para comentar sobre a afetividade utilizaremos portanto, aspectos desenvolvidos pela Psicanálise, onde as manifestações emocionais representam o interesse predominante para esta. Partindo dessa premissa, as relações entre pais e filhos são a essência da visão psicanalítica do desenvolvimento humano, baseada no desejo do outro, sendo que partir do nascimento a criança está constituindo-se como sujeito, e suas primeiras relações são de suma importância no alicerce para futuros relacionamentos com pessoas fora de sua família. Assim, uma rejeição inicial leva a criança a transferir para o mundo as suas experiências infelizes de afeto materno, podendo até vir a se constituir como uma inibição de aprendizado.
Segundo Bowlby (1984), o ser humano desde que nasce entra em contato com outras pessoas, formando vínculos afetivos vitais para o seu desenvolvimento. Assim, a mãe torna-se a figura principal por manter uma interação afetiva com a criança, respondendo-a na medida do possível, preenchendo a vida do bebê com carinho, amor e atenção que são indispensáveis para que criança se relacione com outras pessoas. Mas, não é só a mãe que tem este papel essencial no relacionamento afetivo, o pai também é uma figura participativa desde o momento que tem que desejá-lo, dando amor, carinho e atenção. O fato de uma criança ter sido desejada desde a concepção até o seu vir ao mundo, constituindo-se como ser-no-mundo é fundamental em relação ao modo como os pais irão tratá-la.
O modelo paradigmático winnicottiano relaciona indivíduo - ambiente, o ser-no-mundo, onde o indivíduo é caracterizado pela tendência para o crescimento e amadurecimento, e tendo o ambiente o papel de facilitar o mesmo. Assim sendo, Winnicott parte do princípio que o ambiente lúdico favorece a criação de situações espontâneas do brincar e da comunicação significativa .
Do ponto de vista do desenvolvimento da criança, a brincadeira traz vantagens sociais, cognitivas e afetivas, pois a criação de uma situação imaginária não é algo fortuito na vida da criança; pelo contrário, é a primeira manifestação da emancipação da criança em relação a restrições situacionais. Desta forma, o lúdico no ambiente escolar poderá configurar-se como espaço de diagnóstico dos interesses e necessidades da criança, transformando-se em espaço preventivo de inibição intelectual, possibilitando a criação de um vínculo com o educador para o desenvolvimento do desejo de saber.
Entendemos, assim, ser a escola um “espaço suficientemente bom” parafraseando Winnicott, onde o lúdico através da oralidade contribui para a junção dos três aspectos supracitados: linguagem, pensamento, mas principalmente afetividade.
“Na tenra infância, essa área intermediária é necessária para o início de um relacionamento entre a criança e o mundo, sendo tornada possível por uma maternagem suficientemente boa na fase primitiva crítica. Essencial a tudo isso é a continuidade (no tempo) do ambiente emocional externo e de elementos específicos no ambiente físico, tais como o objeto ou objetos transicionais.” (Winnicott, 1975, p.29)
Como o brincar se configura numa linguagem anterior a verbalização, mas como condição necessária para o surgimento desta, será através do brincar que a criança irá sentir, viver e reviver a sua experiência com o ambiente exterior, criando um ambiente imaginário paralelo a este, sem medos, ameaças, e dando um novo significado ao mesmo. Há, portanto, neste lidar com a realidade, um espaço reservado para a linguagem que produz efeitos de significação a partir de imagens, cenas e ações.
ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro, Guanabara, 1981.
BUZZI, Arcangêlo R. Introdução ao Pensar: O Ser, o Conhecer, a Linguagem. Petropólis: Editora Vozes Ltda., 1979.
BOWLBY, Jonh. Apego e Perda. São Paulo: Editora Ltda., 1984.
FERNÁNDES, Alícia. A Inteligência Aprisionada. Trad. Iara Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
FREUD, Sigmund (1917) “Cinco lições de Psicanálise”. In: ESBOPCSF Rio de Janeiro: Imago,1969.
SPELLER, Maria Augusta Rondas. Psicanálise e Educação: caminhos cruzáveis. Brasília: Plano Editora, 2004
WINNICOTT, Donald. W. A Família e o Desenvolvimento do Indivíduo. Trad. J. Corrêa. Belo Horizonte: Interlivros, 1980.
______________ O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.